sábado, 1 de outubro de 2011

A controvérsia dos prêmios internacionais em farmacologia - o passado do Brasil e a vez da China

Há muitos exemplos de prêmios internacionais na área de medicina, em especial na área de farmacologia, que geram controvérsia pela nominação de um ou poucos cientistas de um grande grupo que contribuiu para uma descoberta. Um comentário do famoso farmacologista Ervin Erdös em um artigo seu publicado em 2006 (recomendado a quem quiser saber mais sobre a descoberta da enzima conversora de angiotensinogênio - ECA - e os inibidores da ECA): "uma droga que vende bilhões de dólares tem muitos pais, enquanto outra, que não consegue ser comercializada após seu desenvolvimento, é uma órfã". Isto ilustra um dos principais motivadores da discussão ao redor da autoria da descoberta de drogas - o sucesso. Torna-se natural, então, que medicamentos associados com prêmios internacionais ( Lasker, Nobel, entre outros) sejam alvo de importantes controvérsias. O Brasil tem um exemplo importante num de seus maiores cientistas: Sérgio Henrique Ferreira, paulista que participou da descoberta do mecanismo de ação da aspirina via inibição de prostaglandinas (veja link para a publicação, que rendeu o Nobel de Medicina de 1982 para John R. Vane, chefe e orientador de Ferreira na época. Além desse seu mais conhecido trabalho, que representou o início da era dos antinflamatórios não esteroidais, um dos grupos de medicamentos mais vendidos da história, Sérgio Ferreira também participou de outras descobertas fundamentais da farmacologia. A revisão de Erdös e virtualmente todos os textos sobre o desenvolvimento dos inibidores de ECA relata a participação fundamental de Ferreira nas fases iniciais e durante o desenvolvimento do captopril. Ferreira demonstrou na década de 60, pela primeira vez, que um fator do veneno da jararaca (Bothrops jararaca) bloqueava a inativação da bradicinina, mediada pela ECA. Trabalhando no laboratório de John R. Vane, a partir do estudo deste efeito, ele isolou do veneno da Bothrops um pentapetídeo que constituiu o primeiro inibidor da ECA. Vane, que conhecia o papel importante da ECA na fisiologia humana, enviou o peptídeo de Ferreira para os Estados Unidos da América, convencendo seu amigo e antigo mentor, A.D. Welch, da Squibb, de seu potencial. A análise da estrutura do peptídeo e da ECA por vários cientistas da Squibb (que receberam o Lasker) culminaram no desenvolvimento do captopril, a primeira droga comercialmente disponível para inibir a ECA e até hoje um sucesso de mercado (e, mais importante, responsável por ter salvo  milhões de vidas no tratamento da hipertensão e insuficiência cardíaca). Ferreira recebeu, em 1983, o CIBA Award for Hypertension Research, juntamente com E. Ondetti e D. Cushman, da Squibb. A própria ECA teve seu papel na fisiologia esclarecido também com a ajuda de outro brasileiro, mentor de Ferreira, Maurício Rocha e Silva, fundamental na descoberta da bradicina e seu papel fisiológico. Fora dos círculos da farmacologia, Sérgio Ferreira é pouco conhecido. Isto ilustra, entre outras coisas, a polarização anglo-saxônica do mundo científico.

Agora, de acordo com um artigo no blog da Science Insider, o prêmio Lasker, considerado quase tão importante quanto o Nobel (muitos nobelistas ganharam antes o Lasker) gerou mais uma dessas controvérsias ao nominar a cientista chinesa Tu Youyou pela descoberta das artemisininas, drogas que tratam adequadamente casos de malária resistente a múltiplas drogas e que têm salvo  milhões de vidas em países em desenvolvimento, como o Brasil. Vários cientistas chineses proeminentes denunciaram a escolha exclusiva de Tu, indicando que outros cientistas da China também tiveram participação fundamental no desenvolvimento das artemisininas. Rao Yi, neurocientista da Universidade de Pequim, disse que, apesar de Tu não ter sido a única cientista proeminente no desenvolvimento destas drogas, ela pode ser vista como a cientista mais representativa neste desenvolvimento. Complicando a avaliação da controvérsia, vários cientistas baseiam suas alegações em documentos secretos do governo chinês, restritos ao público e à comunidade científica.
Nos anos 60, o governo revolucionário de Mao Tse-Tung ordenou um ambicioso projeto de pesquisa para descobrir novos tratamentos para a malária que dizimava soldados dos seus aliados vietnamitas. Uma das abordagens usadas foi a avaliação farmacológica de plantas usadas na medicina popular. Uma análise estatística de remédios tradicionais chineses indicou que aquele conhecido como qinghao era o mais usado. Yu Yagang, cientista do mesmo grupo, foi designado por Tu para testar um extrato bruto desta planta para tratar animais com malária, obtendo altos índices de cura. Como o processo de extração rendeu um composto impuro e com baixa concentração de princípio ativo, Wei Zhenxing  e outros desenvolveram paralelamente métodos para extrair artemisinina da planta Artemisia annua. Depois disso, pesquisadores em Xangai descobriram a estrutura e possível mecanismo de ação da artemisinina, totalmente novos, o que levou ao desenvolvimento posterior de derivados da artemisinina com melhor atividade antimalárica e utilidade clínica. São estes derivados que hoje são usados clinicamente em vários países. Apenas a partir de 1977 o governo chinês permitiu que os grupos científicos envolvidos começassem a divulgar seus trabalhos. Na cerimônia de entrega do prêmio Lasker, Tu declarou que o prêmio pertence a todos os cientistas chineses, e não somente a ela. Antecipa-se a possível indicação de Tu ao Nobel, pelo seu trabalho.

Leia o artigo da Science Insider: http://bit.ly/qunGXR

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