quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Fosfoetanolamina: o que é real?

Não é preciso apresentar a fosfoetanolamina, uma substância cujo nome vem sendo tão divulgado quanto pouco compreendido. Recentemente, uma polêmica acendeu-se a respeito do possível efeito anticâncer da fosfoetanolamina. Mas, afinal, o que é esta substância?
Fosfoetanolamina
Estrutura química da fosforiletanolamina, também conhecida como fosfoetanolamina.


A fosforiletanolamina, ou fosfoetanolamina,
é uma substância química de origem natural, encontrada num grande número de seres vivos. Incorretamente,
até mesmo documentos do Ministério da Saúde, além de inúmeras páginas na internet, informam que a fosfoetanolamina é encontrada em mamíferos. Na verdade, como se pode checar na literatura científica publicada, ela está presente em organismos desde bactérias até o cérebro humano, onde existe em grande quantidade. Uma de suas principais funções biológicas é servir para a síntese de fosfolipídios, o constituinte básico das membranas celulares.
Ela foi isolada pela primeira vez na década de 30 por Edgar Laurence Outhouse, a partir de
tumores malignos de boi. Este autor também isolou a mesma substância de diversos tecidos
vivos normais. Na década de 70, diversos autores descreveram métodos para sintetizar e dosar esta substância. Assim, dessa forma é
também incorreto se atribuir à integrantes da equipe do Instituto de Química de São Carlos a "descoberta" ou "síntese" da fosfoetanolamina.
A fosfoetanolamina já foi estudada pontualmente por grupos de pesquisa de vários locais, investigando seu potencial efeito em células de câncer e no sistema nervoso central. Os resultados foram negativos. Em 2004, o National Cancer Institute (NCI) americano reportou um experimento que testou mais de 58 mil compostos químicos em camundongos com uma linhagem de células leucêmicas. Um total de 1655 substâncias diferentes mostraram alguma atividade, e continuaram a ser estudadas. A fosfoetanolamina não demonstrou nenhuma atividade anticâncer. Dessa forma, ao contrário do que a
mídia divulga, os brasileiros do IQSC não foram os primeiros a publicar experimentos sobre o suposto efeito anticâncer da fosfoetanolamina. Ela já havia sido testada e sua ausência de efeito já havia
sido determinada. Vale lembrar que o NCI é referência mundial em pesquisa do câncer e sua
principal fonte de financiamento é um fundo de pesquisa contra o câncer do governo americano,
não dependendo diretamente da indústria farmacêutica.
A partir de 2014, repentinamente, a mídia brasileira é inundada de informações sobre a "nova pílula do câncer". Na verdade, o professor Gilberto Chiarice, do IQSC, silenciosamente produzia e distribuía
cápsulas contendo fosfoetanolamina para pacientes interessados, que descobriam sobre a substância através da divulgação "boca-a-boca". Isso ocorreu desde a década de 80, ficando desconhecido do
grande público e da comunidade científica neste período. Questionado recentemente, o professor Chiarice declarou que não teve apoio para estudos clínicos. No entanto, nem na ANVISA, nem na
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, órgãos que precisam ser obrigatoriamente notificados para testes de novos medicamentos, existe qualquer referência a pedidos de estudos com a fosfoetanolamina. Nos mais de 30 anos que o professor Chiarice passou distribuindo discretamente suas cápsulas, não existe notícia de alguma tentativa de tornar público o que ele fazia. O fato só se tornou conhecido quando pacientes buscaram a substância e souberam que o professor se aposentara em 2014 e, assim, parara de distribuí-la. Quando pacientes tentaram cobrar a continuidade da produção do "medicamento" pelo IQSC foi que se tornou público o que ocorria. Em nota veiculada em 2014, o IQSC informou que a distribuição e supostos "estudos" com a fosfoetanolamina foram de iniciativa pessoal do professor Chiarice e que não podiam fabricar ou distribuir uma substância sem aprovação, nem comprovação científica. Além disso, informavam que a equipe do professor Chiarice tinha as patentes do método de síntese da fosfoetanolamina, sendo assim, teriam que pagá-los para fabricar a substância.
O caso ganhou uma maior repercussão quando foi judicializado. Pacientes e suas famílias entraram na justiça para obter o direito de receber a fosfoetanolamina para tratamento de câncer. A mídia protagonizou o clássico papel de divulgar todas as informações da forma mais errada possível (como mostrei acima). O caso foi montado como o de uma "nova medicação contra o câncer" que fora "proibida de ser distribuída", sendo que antes os pacientes tinham "livre acesso" a ela. Quais seriam os interesses escusos por trás disso? Logicamente, tudo isso é deturpação dos fatos verdadeiros. A fosfoetanolamina nunca foi uma medicação de uso comprovado no câncer, não ocorreu proibição de sua distribuição (além do impedimento de usar substâncias não testadas, que é antigo) e ninguém tinha acesso a ela, a não ser quem ouvia de algum conhecido ou familiar em conversas informais, uma vez que nunca houve divulgação do seu uso. E, quanto a interesses escusos, o mundo está cheio deles, mas para quem a fosfoetanolamina realmente importa (afora os pacientes esperançosos)?
E quanto aos casos de pacientes "curados", mostrados com estardalhaço na mídia? O tratamento de uma doença complexa e grave como o câncer envolve um grande número de fatores que pode afetar o desfecho final. Diagnóstico precoce, hábitos de saúde, nutrição, acesso a um tratamento de qualidade, qualidade de vida, fatores biológicos (como a agressividade da doença e a resistência a tratamentos). Quase sempre, é muito difícil descobrir qual foi o "fator (ou fatores) fundamental" que permitiu a um paciente alcançar a cura, mas a outros não. Assim, é muito fácil se enganar com um tratamento particular, achando que foi ele o determinante de uma cura, quando na verdade foi outra coisa ou coisas). Dito isto, o que diferencia o modo como descobrimos novos tratamentos hoje em dia do modo como fazíamos em tempos primitivos é o método. Em comunidades primitivas, e até os dias de hoje, as pessoas passam de "boca-em-boca" recomendações sobre como usar tratamentos e remédios "caseiros". Essas experiências pessoais, trocadas de pessoa a pessoa, de grupo em grupo, transmitidas de geração a geração foram aos poucos formando um corpo de idéias tradicionais sobre o tratamento das doenças. Mas este sistema tinha desvantagens. Se uma pessoa usasse um tratamento e ficasse boa, a chance dessa informação passar adiante era grande. Pelo contrário, se uma pessoa morresse apesar de um tratamento, a chance dessa informação passar adiante reduzia, por falta de fonte. Assim, havia o risco de "tratamentos" que, na verdade, faziam mal, serem disseminados como corretos. Este tipo de distorção, ou viés explica porque tratamentos como tomar chá de "bosta de cachorro" eram "prescritos" tradicionalmente no interior do meu estado, por exemplo.
Outro problema que ocorria é que existiam muitas vezes um grande número de tratamentos tradicionais recomendados. Como descobrir o que realmente funcionava? Isso foi um problema bem prático e urgente para James Lind, um assistente de cirurgião escocês da marinha britânica. Em 1747, ele estava embarcado no navio Salisbury. Durante um surto de escorbuto, o capitão pediu que ele tratasse os marujos doentes. Naquela época, nada se sabia sobre as vitaminas. Lind simpatizava com uma teoria em voga de que o escorbuto era um "apodrecimento" da carne que poderia ser evitado com "ácidos". Mas a quantidade de possíveis tratamentos tradicionais recomendados era grande. Como descobrir o correto sem matar os marinheiros? Lind resolveu dividir os doentes em cinco grupos e dar-lhes cinco tratamentos diferentes: cidra, vitriol (elixir de ácido sulfúrico), vinagre, frutas cítricas (duas laranjas e um limão por dia) e água do mar. A água do mar foi uma sacada inteligente dele: não era ácida, logo, não deveria funcionar, mas tinha um gosto ruim como o da maioria dos outros tratamentos. Essa foi a primeira vez que alguém fez um experimento em que observava pacientes usando diversos tratamentos e, ao mesmo tempo, um grupo controle, com placebo (substância sem efeito terapêutico). Foi o primeiro estudo clínico controlado de que se tem notícia. Lind comparou o que ocorria entre os grupos: em duas semanas, os pacientes consumindo frutas cítricas estavam recuperados. Dos outros grupos, apenas os que tomaram cidra achavam que estavam "algo melhores", mas continuavam doentes. Assim, Lind não teve dúvidas de qual era o único tratamento realmente eficaz para o escorbuto. Note que, de acordo com o conhecimento tradicional e com a teoria da época qualquer um daqueles tratamentos poderia ter efeito. Somento o estudo clínico controlado conseguiu desvendar o enigma.
Algo semelhante pode ocorrer com qualquer tipo de terapia alternativa, inclusive a fosfoetanolamina. Relatos individuais de "curas", muitas vezes de pacientes que estavam usando outros tratamentos, podem ser supervalorizados, enquanto os casos de insucesso passam silenciosamente despercebidos. Apenas quando há uma comparação controlada é que se descobre a verdade. Tempos atrás, a babosa (Aloe vera) popularizou-se como possível tratamento natural anticâncer. Hoje em dia, sabe-se que seu consumo prolongado por via oral pode levar a sérias complicações, não apenas atrapalhando o tratamento convencional do câncer, mas podendo causar malefício diretamente aos pacientes. Da mesma forma, a Noni (Morinda citrifolia) uma fruta asiática que também se popularizou recentemente como suplemento alimentar no combate ao câncer, pode causar efeitos adversos ainda mal conhecidos, sugerindo precaução no seu uso. Nos dois casos, os relatos de pacientes "curados" depois de usar babosa ou noni são muito semelhantes aqueles associados à fosfoetanolamina.
Afinal, o que fazer em relação à fostoetanolamina? Parece bem claro: estudá-la, de forma correta, controlada, evitando os vieses e distorções e, principalmente, evitando sensacionalismo. A fosfoetanolamina pode ser um importante tratamento do câncer no futuro? Nada impede, a não ser a falta de estudos. Se essa substância mostrar atividade contra o câncer em modelos in vitro, animais e, finalmente, em seres humanos (de forma controlada), saberemos com certeza que ela é eficaz. Acabará, assim, o tormento de pacientes que imaginam que estão sendo privados de uma alternativa, mas que, na verdade, podem estar apostando num castelo de cartas.

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