segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Minha experiência com o PeerJ Preprints

Sempre tive curiosidade sobre o repositório de preprints das ciências exatas, o arXiv (lê-se 'arquaive'). Criado por Paul Ginsparg, um físico da Universidade de Cornell que é mundialmente conhecido por sua gênese do repositório open access de arquivos de física, originalmente sediado no Los Alamos National Laboratory (LANL). Ele lançou a primeira versão do que viria a ser o arXiv em 14 de agosto de 1991 (coincidentemente, no dia de meu aniversário de 20 anos - sabe o que isso significa? Acertou, NADA!).

Preprints são documentos ainda não publicados, que não passaram pela revisão por pares e processo editorial de periódicos científicos. São, comumente, considerados rascunhos, versões preliminares de trabalhos que, posteriormente, serão avaliados apropriadamente para publicação em revistas convencionais. A origem dos preprints é antiga. Habitualmente, os físicos sempre trocaram correspondências entre si para discutir detalhes de trabalhos em andamento, ou para pedir auxílio para corrigir um manuscrito (eu quero dizer manuscrito mesmo!). Entre mas cartas famosas de físicos, as mais conhecidas talvez sejam as de Newton (por causa das quais nós hoje sabemos que ele era um fanático anglicano criacionista, anti-católico e alquimista que, nas horas vagas, descobriu a Gravitação Universal) e as de Einstein. Na era do email. tornou-se comum distribuir preprints em formato eletrônico, às vezes para muita gente. Com o intuito de padronizar o formato e diminuir o tamanho dos arquivos, os físicos passaram a usar, rotineiramente, arquivos no formato TeX ('tek'), criado por Donald Knuth. Mesmo assim, logo as caixas de entrada de emails estavam lotadas de preprints.

Esse problema levou Paul Ginsparg a criar uma caixa de entrada de email centralizada no LANL, acessível a qualquer computador. Rapidamente, o serviço cresceu, adicionando funcionalidades (ftp, gopher, www) e passou a receber preprints de outras áreas além de física: astronomia, matemática, ciência da computação, biologia quantitativa, ciência não linear e, mais recentemente, estatística. Em algumas áreas da física, praticamente todos os artigos publicados passam, antes, pelo arXiv. As motivações para os cientistas publicarem preprints no arXiv continuam basicamente as mesmas de séculos atrás: solicitar opiniões e revisões de colegas e assegurar a originalidade e prioridade de seus trabalhos.







LANL
Fig1. - Tela do arXiv em 1994, navegador Mosaic. Naquela época, formulários em html eram novidade (fonte: Wikipedia).


A distribuição dos manuscritos arquivados no arXiv é de acesso aberto ("open access"). Na verdade, o arXiv foi criado bem antes do surgimento deste termo, e sua existência motivou o movimento de acesso livre de publicações acadêmicas da chamada "Via Verde". Neste modelo, o autor auto-arquiva em formato eletrônico seu trabalho num repositório institucional ou público e o disponibiliza sem custo para download. Isto pode ser feito antes da revisão por pares (caso dos preprints e do arXiv), ou após a revisão por pares e publicação (caso do Pubmed Central). Esta modalidade de acesso aberto foi a proposta original de Steve Harnard no seu blog Subversive Proposal, em 1994, o qual levou à criação dos primeiros repositórios para auto-arquivamento. No Brasil, existem alguns repositórios institucionais, como o Repositório Institucional UNESP, o LUME - repositório digital da UFRGS e o TEDE - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFC. Um exemplo: este é o link para download da minha dissertação de mestrado, armazenada no TEDE.

A publicação em acesso aberto, todavia, tomou proporções imprevisíveis, ao ser abraçada por diversas editoras de publicações acadêmicas. Essa modalidade é conhecida como a "Via Dourada" do acesso aberto. Normalmente, empresas como a Public Library of Science (PLOS) e Biomed Central disponibilizam eletronicamente o conteúdo completo de suas publicações sem custos para o leitor. Para cobrir os 'custos editoriais', estas empresas costumam cobrar "taxas de processamento de arquivo", da ordem de centenas a milhares de dólares por manuscrito. Usualmente, estas taxas são cobertas pelas instituições ou órgãos de fomento dos projetos de pesquisa. Críticas têm sido feitas ao peso que estas taxas podem representar ao orçamento de C&T, em contraste com o modelo tradicional, onde o leitor paga pelo trabalho científico. Na verdade, transferiu-se o custo institucional de setor: das bibliotecas para as agências de fomento, mas são as instituições (universidades, centros de pesquisa, etc) que continuam a pagar a maior parte da conta. Alguns dados parecem indicar que, ao contrário do que alguns acham, as publicações de acesso aberto são menos onerosas para o sistema como um todo. Veja esta postagem sobre o assunto. No Brasil, bem como na maior parte da América Latina, o modelo de acesso aberto é o mais utilizado, graças à plataforma Scientific Eletronic Library Online (SciELO), criada em 1998 em uma parceria entre FAPESP e Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME/OPAS/OMS) e que tornou-se a maior provedora de acesso aberto do planeta. Hoje em dia, graças ao SciELO, quase toda a produção científica do Brasil é disponível em acesso aberto.







arXiv
Fig2. - Tela atual do arXiv, navegador Safari.

Uma experiência recente e algo diferente foi lançada recentemente: o PeerJ. Esta empresa, criada por nomes egressos de outras empresas do mundo do acesso aberto, como Peter Binfield (PLOS ONE), Jason Hoyt (Mendeley) e Tim O'Reilly, mega-empresário especialista em financiar iniciativas de publicação eletrônica. PeerJ lançou duas novidades: planos vitalícios de publicação (pague uma vez, publique para toda a vida) com preços bem abaixo da média de acesso aberto e um repositório de preprints para a área da saúde e biologia, o PeerJ Preprints. Não foi o primeiro repositório desta natureza, mas os arquivos de preprint em biologia e saúde costumam ter vida curta. Existem muitas razões para isso, mas a principal, a meu ver, é a ausência de uma tradição de troca de informações não publicadas entre colegas, como existe na física e matemática. Na verdade, a maioria dos cientistas das áreas biológicas e saúde evitam divulgar seus resultados antes da publicação formal. Talvez isso se deva à ênfase muito maior no empirismo do que na modelagem matemática ou lógica, eu não tenho certeza. Talvez, tenha a ver com um perfil básico sociodemográfico de profissionais que acaba senso "selecionado" para trabalhar nesta área. Isto, sem dúvida, é extremamente especulativo, mas a experiência comum indica que existem diferenças sociais entre os cientistas da área de física e matemática e aqueles de biológicas e saúde. De toda forma, os hábitos destas duas "sociedades" informais diferem.

Repositórios de preprints para a área de saúde e ciências biológicas incluem o bioRxiv, operado pelo Cold Spring Harbor Laboratory desde novembro de 2013 e com a participação de ninguém menos do que Paul Ginsparg em seu Advisory Board. Outros repositórios: Nature Precedings, que já deixou de receber novos preprints mas ainda está no ar e pode ser consultado, e o PeerJ Preprints. Uma outra iniciativa foi o Science Commons, projeto-filho do Creative Commons que pretendia estimular e integrar o uso de licença de acesso aberto para a maior parte do mundo acadêmico. Criado em 2005, o projeto foi reintegrado ao Creative Commons em 2009, na forma de seu portal Science, que tenta centralizar e estimular o uso de licenças CC pelos provedores de conteúdo de acesso aberto. Uma outra iniciativa com nome parecido, mas que nada tinha a ver com o CC foi a Scientific Commons, um agregador de repositórios de acesso aberto. Desde 2013, sua página na internet não está mais ativa. Como se vê, repositórios e iniciativas de preprint voltadas para áreas que não as servidas pelo arXiv, como saúde e biologia, não costumam ter boa vitalidade por muito tempo. No entanto, a proliferação de provedores de publicações de acesso aberto nesta áreas mostra que os pesquisadores aceitaram muito bem a Via Dourada, apesar de não o terem feito da mesma maneira quanto à Via Verde e auto-arquivamento.







bioRxiv
Fig3. - Logo do bioRxiv.

Isso vinha me deixando frustrado nos últimos anos. A falta de interesse de meus colegas na Via Verde e num sistema de preprints e a ênfase em publicações da Via Dourada com tendências comerciais e sem qualidade (chamadas pelo bibliotecário Jeffrey Beall de predatórias) deixava a impressão de que ninguém mais se importava com a pesquisa em si, com a ciência e com o avanço de resultados, mas sim meramente com carreiras acadêmicas vazias. É por isso que defendo os servidores de preprint na área das ciências biológicas e saúde. Eles estimulam a discussão e a criatividade e aumentam a qualidade geral dos trabalhos. Além disso, desestimulam a proliferação das "editoras" e publicações predatórias.

Resolvi, assim, me aventurar a postar um trabalho no qual havia me debruçado alguns anos atrás e que estava "na gaveta", esperando tempo para ser novamente desenvolvido. Peguei um manuscrito que estava sendo corrigido e resolvi enviá-lo para o PeerJ Preprints. Logo ao entrar em sua página, notei que sua interface preza pela funcionalidade, com visual limpo e poucos elementos de fácil interação. Parece, na verdade, um simples blog. O processo de cadastramento é rápido e fácil. Todos os autores precisam se cadastrar. Ninguém paga nada nesta fase: a publicação de preprints é gratuita. Na página principal, um preprint é definido como "um rascunho de um artigo, resumo ou pôster, ainda não submetido ao processo de revisão por pares". Já nas instruções para autores, a redação é sutilmente diferente: "um preprint é um rascunho ainda não submetido ao processo de revisão por pares, não é uma publicação no prelo, nem um formato eletrônico de um artigo aceito para publicação". Nas instruções mais detalhadas, somos informados que o PeerJ Preprints aceita trabalhos em ciências biológicas, médicas, da saúde e da computação. Não aceita, no entanto, quaisquer trabalhos com implicações terapêuticas ou ensaios clínicos, de qualquer fase. Entre os formatos aceitos, estão artigos de pesquisa, "pôsteres" (as aspas são do original), revisões, opiniões, relatos de caso, etc. Logicamente, trabalhos já publicados ou aceitos para publicação não são permitidos. A publicação final é disponível sob licença CC-BY. À parte a ausência de revisão por pares, os demais processos editoriais são seguidos com rigor, então todas as submissões são avaliadas para ver se estão de acordo com a ética e com as normas de publicação.

Bom, depois de ler as instruções, que são bastante completas e merecem uma lida cuidadosa, procedemos ao processo de submissão. É importante relembrar que todos os autores devem ser avisados da submissão e todos eles irão receber um email confirmatório, solicitando que os mesmos se inscrevam no PeerJ Preprints. Na primeira tela, escolhemos a área de estudo e o tipo de publicação.







PeerJ
Fig4. - Primeira tela para submissão no PeerJ.

Ao iniciar o processo, vamos para uma tela onde existem diversos campos a serem preenchidos com as informações do manuscrito, divididos em várias abas. Vai-se passando de uma a outra ao completar as informações, até chegar ao final e enviar. O processo pode ser interrompido e reiniciado a qualquer momento. Ao terminá-lo, somos informados que o artigo aguarda avaliação editorial e somente após será publicado. Depois de um tempo que pode ser tão curto quanto 24h, mas que pode durar alguns dias, o resultado da checagem é informado via email: aceito ou não. A taxa de aceitação é alta, e basicamente apenas os manuscritos que não aderem às normas de publicação serão rejeitados.






PeerJ
Fig5. - Tela para submissão no PeerJ Preprints.

O resultado final: podem ver aqui no meu preprint, publicado em 30/11. Minha avaliação final como cliente é de um processo editorial muito satisfatório, rápido, com ajuda em todos os passos até o final. Eu recomendo a utilização do PeerJ Preprints como repositório para auto-arquivamento de trabalhos ainda não publicados. O único cuidado a se ter é checar se os jornais onde se pretende publicar depois aceitam trabalhos já tornados públicos na forma de preprints. Consciente disso, vale a pena colocar seu trabalho num repositório de preprints e estimular a discussão e a troca de idéias. Meu manuscrito já está no ar! Aguardo suas análises críticas!

Atualização (30/12/15): publiquei uma nova versão do meu primeiro preprint no PeerJ Preprints, uma funcionalidade muito interessante desta plataforma. Também publiquei meu segundo preprint.

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