Organizada por um grupo independente de cientistas dos EUA para refletir a Marcha das Mulheres e outros movimentos contra o governo Trump e sua política de redução de financiamento para a pesquisa, a Marcha pela Ciência (March for Science) ecoa em diversos países do mundo. Pelo menos 8 países da Europa e vários pelo mundo já tem suas Marchas oficiais, ligadas ao movimento principal, que tornou-se um símbolo internacional. Aqui no Brasil, a Marcha pela Ciência ocorre principalmente em São Paulo, onde está o movimento oficialmente ligado à Marcha americana, porém outras 15 cidades aderiram ao movimento e vão ter suas Marchas, inclusive Fortaleza.
Por que a Marcha pela Ciência tornou-se um movimento internacional? Isso decorre de uma percepção de que existe um clima generalizado de irracionalismo no planeta Terra, algo jamais visto antes (ou pelo menos não a muito, muito tempo). O conhecimento científico tem recebido críticas pertinentes nos últimos anos, porém tem sido atacado mais frequentemente ainda por idéias com pouco ou nenhum fundamento, as quais são propagadas com a velocidade das mídias sociais de forma acrítica e, às vezes, ligadas a interesses de terceiros. Cada vez mais o cientista médio percebe a intrusão da política na própria ciência e na forma como o conhecimento é produzido e divulgado. Isso é visto como uma perigosa extrapolação das prerrogativas sociais e políticas. A sociedade, de certa forma, ou partes dela, não objetiva mais controlar o emprego do conhecimento científico, mas o próprio conteúdo da ciência em si, o que se aproxima da manipulação autoritária do conhecimento como foi feito, por exemplo, no comunismo soviético, no regime nazista ou no período macartista. Tantos outros exemplos podem ser citados, independentes de orientação política, todos unificados pela característica da necessidade de manipulação da opinião publica por governos autoritários.
Some-se a isso uma crise econômica mundial que força os governos a arrochar investimentos e uma crise de credibilidade generalizada ligada a escândalos políticos nacionais e internacionais, tem-se uma situação de alto risco para a ciência. A soma de descrédito pela sociedade, manipulação política e perda de fontes de financiamento desembocam numa crise como jamais foi vista nos meios científicos internacionais. Esse é o combustível do movimento internacional Marcha pela Ciência, que traveste-se de apartidarismo, mas tem um viés claramente anticonservador na maioria dos locais onde é empreendida.
O exemplo brasileiro é fiel à receita. O físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, vê como um desastre com repercussões para as próximas gerações o que está ocorrendo, e liga a falta de credibilidade do executivo e legislativo brasileiros e cortes estruturais como a PEC 55 e as reformas trabalhista e da previdência ao panorama completo. Ele entende a opção do governo brasileiro atual como uma priorização do capital financeiro em detrimento do capital produtivo. Aponta que uma das medidas de sucesso comprovadas em economias que se recuperaram de crises foi o investimento em ciência, tecnologia, pesquisa e educação, caminho oposto ao trilhado agora em nosso país. Segundo ele "o país está matando a galinha dos ovos de ouro". Recentemente, o governo brasileiro tomou medidas que significam a redução da capacidade de produção científica e o investimento em políticas de C&T, como a extinção do Ministério da Ciência e Tecnologia, um histórico corte recorde no orçamento e o fim de programas como o Ciência sem Fronteiras. Essas medidas foram muito impopulares no meio científico e acadêmico brasileiro, gerando uma insatisfação crescente com o governo atual.
Apesar disso, não existem ligações diretas do movimento brasileiro com partidos de oposição ao atual governo. Nos EUA, as sociedades científicas estão apoiando o movimento "a uma distância segura" em sua maioria, temerosos de estimular uma agenda política cada vez mais forte no meio científico. É uma percepção generalizada que a intrusão política na ciência está na raiz de muitos dos males atuais. Dessa forma, o movimento americano tenta desvincular-se de propostas com viés político. De forma análoga, os principais críticos do movimento o apontam como uma oportunidade para mais intervenção de movimentos sociais e políticos na ciência, o que afasta algumas pessoas.
No Brasil, onde a polarização política ocorre num nível muito baixo de diálogo (ou de falta dele), a versão tupiniquim da Marcha pela Ciência tenta ser apartidária e sem nenhuma ligação com a "esquerda", palavra que, hoje em dia, carrega uma forte rejeição motivada pela campanha institucional de estilo macartista que foi empreendida recentemente em nosso país. Mesmo que abracem idéias progressistas, os integrantes do movimento rejeitam o rótulo e levantam a bandeira de mais investimentos e atenção do governo para a C&T. No meio deste estandarte, entram idéias afins com as da oposição brasileira. Por exemplo, na defesa da educação básica, recentemente enfraquecida por mudanças da legislação. Luiz Davidovich declara:
Professores de educação básica são desprestigiados, ao contrário do que acontece em outros países. Quando você pergunta para um jovem estudante na Coreia do Sul o que ele quer ser quando se tornar um profissional, você vai ver vários dizerem querer se tornar professores. Você pergunta por que e ele vai dizer que é uma das profissões mais admiradas. Ganha muito bem, tem um dos salários mais altos.Da mesma forma, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência aponta os graves erros da política de educação ora em implantação no Brasil, denominada "Escola sem Partido". Para os cientistas, iniciativas como essa mostram apenas a vertente mais autoritária dos governos que tentam moldar o conhecimento que é ensinado nas escolas a seu bel prazer, para favorecer a manutenção de seu status quo, sem interesse na verdade ou no desenvolvimento de um pensamento crítico. A história mostrou vezes sem conta que, seja em governos autoritários de direita ou de esquerda, este é um erro fatal para toda a sociedade.
No movimento original, a declaração de sua missão estabelece que "a Marcha pela Ciência defende o financiamento e divulgação públicos da ciência como um pilar da liberdade e prosperidade humanas. Nós nos unimos como um grupo diverso, não-partidário para pedir pela ciência que defende o bem comum e para que líderes políticos promulguem políticas baseadas em evidência no interesse público." E acrescentam os autores dos objetivos do movimento: "agendas e políticas anticientíficas têm sido propostas pelos políticos em ambos os lados, e eles prejudicam a todos - sem exceção".
Também o movimento March for Science original todavia, pende para bandeiras progressistas. Com efeito, eles declaram firmemente:
The March for Science does not tolerate hate speech, bigotry, or harassment within or outside our community. Targeting individuals or communities with violent language, including statements that reflect racism, sexism, ableism, xenophobia, homophobia, transphobia, or any form of bigotry, will result in banning and/or blocking. Personal attacks based on religious affiliation or lack of religious affiliation will also lead to banning and/or blocking.Levantando bandeiras antipreconceito que geralmente são usadas pelos setores políticos mais progressistas. O movimento também apontou três presidentes honorários para ajudar a promovê-lo: Mona Hanna-Atisha, uma pediatra descendente de iraquianos que escreveu recentemente um artigo contra a política de Trump no New York Times, Lydia Villa-Komaroff, uma reconhecida cientista da biologia molecular e ativista pela diversidade e contra o preconceito no meio acadêmico, e Bill Nye, famoso cientista, comediante e apresentador de TV, além de ativista ambientalista e atual presidente da Planetary Society (fundada por Carl Sagan). Esta lista de notáveis aponta uma clara tendência anticonservadora também no movimento original.
Desa forma, não é impossível classificar a Marcha pela Ciência de um movimento apartidário, porém com tendências progressistas, voltado contra o recente assalto global de políticas conservadoras, autoritárias e anticientíficas que ocorre em todo o planeta, inclusive em nosso país, o Brasil. A Marcha pela Ciência, é claro, tem todo o meu incondicional apoio.
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